Matéria:Roberto
Amaral
A convite do Conselho Nacional Eleitoral
(CNE) da Venezuela, uma espécie de nosso TSE, mas sadiamente sem acumular
poder de polícia, tive a oportunidade de acompanhar as eleições presidenciais
de 14 deste abril e compartilhar opiniões com outros companheiros de missão,
Samuel Pinheiro Guimarães, Olívio Dutra, Fernando Moraes e o ministro Dias
Tóffoli, além de representantes da Unasul e do Mercosul, e de instituições
internacionais de quase todos os países do mundo – americanos, mexicanos como
Cuauhtémoc Cárdenas, coreanos, ingleses, suíços, argentinos, franceses,
canadenses, jornalistas (gente das mais diversas agencias noticiosas
internacionais), observadores, especialistas, juristas, escritores… O Mundo
estava em Caracas.
O presidente eleito da Veneziela, Nicolás Maduro.
Foto: Raul Arboleda/ AFP
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Contrariando a expectativa que me fôra criada pela
leitura da imparcialíssima imprensa brasileira, encontrei, às vésperas do
pleito, uma Venezuela tranquila e uma Caracas serena coberta de outdoors dos
dois principais candidatos e animada pela imprensa (jornais e
televisão), em sua maioria esmagadora oposicionista. Após a caminhada de
Capriles, sem incidentes, descrita como monumental, assistimos, na
quinta-feira, a impressionante mobilização popular com a qual Maduro encerrou
sua campanha. Oposição, situação, imprensa não chegaram a acordo na avaliação
da multidão que encheu ruas e avenidas da capital, calculada entre dois e três
milhões de pessoas.
Fora dos atos de campanha, aos observadores internacionais
foi oferecida uma série de palestras com especialistas e funcionários do CNE,
em minuciosas explicações do processo eleitoral. Na sexta-feira 12 participamos
de debates com os comandos das campanhas de Capriles e de Maduro. No
sábado, conhecemos o processo de montagem das máquinas de votação (as urnas
eletrônicas como chamamos aqui), seus sistemas de segurança e
distribuição.
No domingo 14, dia da eleição, os observadores
foram distribuídos em equipes que se espalharam por todos os Estados da Venezuela.
Coube-me integrar um dos grupos de Caracas, tendo a oportunidade de
visitar algumas seções eleitorais em pleno funcionamento e assistir a três
apurações de votos em papel. Explico a seguir como se dá o processo do voto
para que meu eventual leitor possa entender. Antes, assinalo a
ordem, a paz e mesmo a alegria que conheci, nas ruas e nos locais de
votação, livres de manifestações ou ‘boca de urna’. Pode ser uma visão
impressionista, mas recolhi a certeza de que o povo estava consciente da
importância cívica do ato do qual era o sujeito.
O processo de votação. Ao ingressar na sala de votação
(em todas as seções por mim visitadas encontrei delegados dos dois candidatos
principais), o eleitor é submetido à identificação datiloscópica eletrônica,
infalível. Este processo, que na Venezuela é universal, no Brasil é apenas
ensaiado, e ainda timidamente.
Confirmada a identidade e o pertencimento àquela
seção, o eleitor é autorizado a ingressar na cabina indevassável, muito similar
às nossas. Lá, diante de uma tela, na qual se encontram as fotos de todos
os candidatos, pressiona a imagem do seu candidato, estampa que surge no visor
da máquina eleitoral, onde ele confirma seu voto e colhe dele um recibo. É a
comprovação material, gráfica, de seu voto eletrônico. Aí ele sabe
que a máquina realmente registrou sua vontade (o que, no Brasil, é
impossível). Esse recibo o eleitor, à frente de todos, deposita-o
numa urna, que, ao final da votação, é lacrada. Feito isso, assina a folha de
votação, onde também deixa suas impressões digitais, e tem um dedo das mãos
embebido em tinta indelével por uma semana (admito que não entendi a utilidade
disso). Por que o depósito na urna? Se o recibo garante a autenticidade do
voto, o depósito na urna possibilita, em qualquer hipótese de dúvida, a
conferência, mediante a comparação entre o relatório da máquina e os votos
impressos. Explico. Após a votação, encerrado seu processo, o chefe da seção,
em ato publico, aciona a máquina eleitoral, que lhe fornece em segundos um
relatório do qual constam o número de eleitores da seção, total de votantes e
os votos de cada um dos candidatos, inclusive os nulos e brancos e os votos por
partido.
A conferência, ainda impossível no Brasil, não é,
porém, mera hipótese. Pela lei, independentemente de requerimento de qualquer
candidato, imediatamente após a votação e o relatório da máquina, 54% das urnas
são abertas e conferidos os votos, cédula a cédula. Isto foi feito ao final da
votação do dia 14. Nenhuma discrepância nas conferências de 54% das
urnas/máquina de votação, atestado de sua lisura e consequente confiabilidade.
Ao final da apuração, com a eleição apertada de
Maduro, anunciou-se a presença, no pleito, de quase 80% dos eleitores
inscritos, cifra que se pode considerar elevada se considerarmos que na
Venezuela, ao contrario do que ocorre entre nós, e aqui acertadamente, o voto
não é obrigatório. (Nas eleições presidenciais brasileiras de 2010, segundo
turno, a abstenção chegou a 21,47% do eleitorado apto a votar)
Encerrado o pleito, anunciado o resultado, a
presidente do CNE, antes do que entre nós chamaríamos de ‘diplomação’ do
eleito, recebe os observadores internacionais (personalidades e instituições) e
deles seus relatórios. No caso, todos afirmativos da segurança do processo,
garantidora da confiabilidade do resultado eleitoral.
O candidato Capriles, quando questionou o
resultado, sabia que estava fazendo encenação, demagogia impatriótica, açulando
seus seguidores para um confronto inglório e inútil e acima de tudo
irresponsável. Apesar das mortes, lamentáveis, não houve o caos tentado, e a
Venezuela volta ao trabalho e à tranquilidade institucional. Para isso foi
fator relevante o pronunciamento dos Estados sul-americanos, a atuação da
UNASUL e a presença dos presidentes dos países da região na posse de
Maduro. Aos poucos se afirma a autonomia sul-americana, superando, com a união
de nossos Estados, a supervisão norte-americana. Quedou-se no vazio a
resistência de Washington em reconhecer o resultado do pleito.
Mas isso não é, todavia, a história
toda. O resultado do pleito também revela uma sociedade
perigosamente partida ao meio, e, diante dessa divisão, um governo que nasce
fragilizado pelos números eleitorais, minado pela política desestabilizadora
dos EUA, fustigado diuturnamente pelo monopólio ideológico da informação que
desempenha papel decisivo na formação da consciência política, sempre na
contramão dos interesses nacionais e populares. De outro lado, e
cumulativamente, enfrentará uma oposição que, em embates anteriores, já disse
qual é seu compromisso com as regras da democracia. Nenhum.
O governo Maduro e as forças progressistas
organizadas, deverão, enquanto é possível, promover uma profunda
avaliação desses ricos 14 anos de governo, mas, de especial, do
período que dista de outubro último a essas eleições. Nesse curto período de
seis meses, a vitória de Hugo Chávez, com cerca de 10% de vantagem sobre os
votos de seu adversário, reduziu-se aos minguados de 1,7% de Maduro, apesar de
a campanha haver sido envolvida emocionalmente pela morte do grande líder.
Há que se buscar explicação, pois, evidentemente, parte do eleitorado
fiel a Chávez em 18 eleições migrou para o adversário. É insensato, portanto, o
senhor Maduro acusar o ‘avanço’ da burguesia, quando, na verdade, o candidato
oposicionista teve quase metade dos votos. Nessa metade, por óbvio, estão
os ricos, uma minoria mínima em face da persistente concentração de renda,
está a classe media, e muitos pobres, trabalhadores, descamisados e favelados,
a base de sustentação social do chavismo. Observadores atentos me dizem que
essa migração para Capriles pode ter tido razão na desvalorização do bolívar (a
moeda local), de quase 50%, promovida por Maduro como Presidente interino,
medida de imediato impacto nos preços, e na crescente deterioração da segurança
pública na grande Caracas. Pode ser. Mas, ainda, não é tudo.
O futuro do governo Maduro – pois, é preciso
dizê-lo, nas circunstâncias atuais ele não tem assegurada a integralidade de
seu mandato de seis anos – depende muito dessa auto-reflexão, depende da
solidariedade dos governos e povos do continente, depende de seu desempenho
político (sua capacidade de alargar o atualmente restrito arco de alianças
sociais) e depende de seu desempenho na gestão da economia nos próximos três
anos, pois nasce ameaçado pela convocação de um referendo revocatório de
mandato, novidade introduzida pela Constituição bolivariana, com o qual já
acena a oposição, inconsolável com mais uma derrota, mas cheia de esperança
para voltar ao poder.
A interligação dos processos políticos em nosso
subcontinente diz que não há mais desenvolvimentos isolados, não somos
mais ilhas perdidas entre si. O arquipélago transforma-se em continente. O
que ocorre na Venezuela (e em cada um de nossos países) diz respeito a todos.
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